606 visitas - Fonte: Folha de São Paulo
O Tribunal de Justiça Militar (TJM) de São Paulo decidiu condenar dois PMs por estupro praticado contra uma mulher no interior de uma viatura em Praia Grande, no litoral paulista. A decisão, tomada a partir de um recurso apresentado pela Defensoria Pública de São Paulo, pode representar um precedente inédito para o acesso à Justiça castrense por vítimas de crimes praticados por policiais militares.
O caso de estupro ocorreu em junho de 2019, durante o turno de trabalho dos soldados Danilo de Freitas Silva e Anderson Silva da Conceição. O primeiro foi condenado a 16 anos de prisão em regime fechado, e o segundo, a sete anos de reclusão em regime semiaberto. Cabe recurso.
De acordo com o relato feito pela vítima, ela perdeu o ponto de descida do ônibus para a cidade litorânea de São Vicente, onde residia, e procurou um posto policial localizado na entrada de Praia Grande. Ao pedir informações, os dois PMs ofereceram uma carona até a rodoviária mais próxima. A jovem aceitou. Em vez de ser levada até o destino prometido, no entanto, ela foi conduzida a um local deserto, onde o estupro foi consumado.
O soldado Anderson, que dirigia o carro, foi totalmente absolvido em primeira instância. Já Danilo, que admitiu a prática sexual, havia sido absolvido do crime de estupro e condenado a sete meses de prisão em regime aberto por libidinagem.
De acordo com o juiz militar Ronaldo João Roth, cuja sentença agora foi reformada, a jovem não teria tentado impedir o ato nem pedir ajuda. Na época, o juiz também disse ser "impossível" a prática de estupro na traseira de um Fiat Uno, por causa de seu espaço diminuto, embora um laudo da perícia demonstrasse o oposto.
O Ministério Público de São Paulo não recorreu da decisão —o que, a princípio, impossibilitaria a interposição de qualquer recurso. O Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres da Defensoria Pública, porém, decidiu apresentar um mandado de segurança à segunda instância da corte.
A Defensoria sustentou que a Constituição Federal e tratados internacionais subscritos pelo Brasil garantem a apresentação de recursos a todas as pessoas que tiverem os seus direitos violados. E defendeu que o Código de Processo Penal Militar, que veda que o assistente de acusação recorra sem o Ministério Público, ganhasse uma releitura a partir da Carta Magna de 1988.
Ainda no ano passado, a corte acatou o mandado de segurança e afirmou não haver razão para que pessoas ofendidas por crimes militares tenham menos prerrogativas que vítimas de crimes comuns.
Para pessoas familiarizadas com o caso, o recurso apresentado pela Defensoria Pública de São Paulo e acatado pelo TJM abre caminho para uma Justiça castrense mais democrática e menos corporativa.
O precedente poderia servir, por exemplo, para parentes de vítimas mortas durante operações policiais em favelas. Em situações em que PMs são absolvidos e o Ministério Público não recorre, é comum que órgãos internacionais como a Corte Interamericana de Direitos Humanos sejam buscados como alternativa. Eles, no entanto, podem levar anos para apreciar uma denúncia.
Ao julgar o mérito do caso ocorrido em Praia Grande, os três juízes foram unânimes ao reconhecer a prática do crime de estupro. Os magistrados concluíram que a vítima mostrou coerência em todas as vezes em que foi ouvida e que seu relato encontrou respaldo nas provas colhidas, como o exame de corpo de delito. Os PMs, por outro lado, mudaram suas versões por diversas vezes.
"A sentença [de primeira instância] não reúne condições de subsistir, cabendo a esta Casa Revisora reformá-la, desvencilhando-se do emaranhado de mentiras incessantemente produzidas pelos corréus [os dois PMs]", afirmou o juiz militar Silvio Hiroshi Oyama, relator do caso. "[Eles] mentiram com a segurança de quem falava a verdade", disse ainda.
O magistrado refutou a argumentação apresentada pela defesa do soldado Danilo de que o sexo teria sido consensual, destacou que a jovem encontrava-se em desvantagem diante das circunstâncias e afirmou que o fato de ela não ter enfrentado o seu algoz não tira a credibilidade de suas palavras, ao contrário do que sustentou o PM e do que concluiu o juiz Ronaldo João Roth.
"Nesses mais de trinta anos militando na Justiça Criminal (comum ou castrense), nunca —repito, nunca— funcionei num processo de roubo em que se deixou de dar fé ao relato do ofendido porque ele não reagiu ao ladravaz. Então, por que exigir tal conduta da vítima de crime de violência sexual?", disse o juiz Silvio Hiroshi Oyama.
"Não pode passar desapercebido que a intenção criminosa do soldado PM Danilo mostrou-se evidente desde o início dos fatos, demonstrando a premeditação da empreitada delituosa. Agindo como agem os predadores, elegeu a pequena vítima como objeto para a satisfação de sua repugnante concupiscência", afirmou ainda.
Embora o PM Anderson, que dirigia o carro, não tenha participado da conjunção carnal, a corte militar entendeu que ele foi cúmplice do ato criminoso. Por isso, estendeu ao soldado a condenação por estupro. Os magistrados ainda levaram em consideração o seu alinhamento às teses defensivas do soldado Danilo como indício de que atuaram juntos.
"Anderson aderiu à conduta de Danilo e contribuiu para consumação das práticas delituosas. Uma oposição deste policial poderia ter evitado a prática dos crimes ora elencados", afirmou o juiz Avivaldi Nogueira Junior. "Anderson agiu como cúmplice no cometimento dos crimes, não se afigurando mera prática de omissão", seguiu.
O juiz Enio Luiz Rossetto, que também atuou no julgamento da Segunda Câmara do TJM, concordou. "Anderson levou a vítima e o autor direto até região erma, tinha conhecimento de causa, sabia muito bem o que estava acontecendo no banco de trás da viatura. Portanto, não houve omissão, mas, sim, cumplicidade", decidiu o magistrado.
Perante a corte, ao contestar o dispositivo apresentado pela Defensoria Pública de São Paulo, a defesa do PM Anderson afirmou que ele não cometeu o crime de estupro por estar na condição do motorista.
A defesa do PM Danilo, por sua vez, sustentou que o soldado tem bom comportamento profissional e atuou de forma colaborativa ao confessar o ato de libidinagem. Disse, ainda, que a vítima buscava ter "15 minutos de fama" com a contestação.
Já o Ministério Público disse que a Defensoria Pública não tinha legitimidade e que atuou de forma "desprezível" ao "menoscabar a honra do magistrado" Ronaldo João Roth, dados os questionamentos apresentados à decisão de primeira instância.
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