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As colinas riscadas pela soja criam uma paisagem ondulatória para quem viaja pelas rodovias da região de Dourados (MS). O cenário tão oscilante quanto um gráfico econômico só é interrompido por pequenos trechos de mata. Ocultas dentro de alguns deles estão aldeias indígenas.
"Eram 4h da manhã, ainda estava escuro, e meu avô achou que estava chovendo, pelo barulho das gotas batendo no teto de lona. Quando saiu, sentiu o cheiro bem fedido e percebeu que era agrotóxico", conta Erileide Domingues, liderança da aldeia Guyraroká, no município de Caarapó. "A gente vive no meio do veneno. Respira, come, bebe e veste o veneno que eles jogam."
A pulverização noturna com aviões é mais um capítulo da conflituosa relação dos guaranis-kaiowás com seus vizinhos fazendeiros. Os casos são tão frequentes e sistemáticos em Mato Grosso do Sul que foram definidos como "agressões químicas" pelo procurador Marco Antônio Delfino, do Ministério Público Federal, que leva à frente várias denúncias.
"É como uma guerra. Eles começaram com tiros para intimidar e tratores empurrando nossas ocas. Depois passaram a atacar a gente com veneno, que é uma arma que mata aos poucos. Eles querem correr com a gente daqui, mas nós vamos resistir", afirma Ezequiel João, liderança no assentamento Guyra Kambi’y, em Douradina.
Segundo a legislação, os aviões pulverizadores só podem voar a mais de 500 metros de distância de áreas habitadas. Não é o que se vê em vários flagrantes gravados por celulares dos rasantes e sobrevoos em terras indígenas na região.
Educação pulverizada
Toda feita de alvenaria e pintada de branco, verde e marrom, a escola na aldeia Guyraroká foi inaugurada em abril de 2019. No mês seguinte, o colégio já virava notícia: uma nuvem de calcário e agrotóxico fez quatro crianças e dois adolescentes serem hospitalizados. Eles tinham dores no peito, estômago e cabeça, além de tosse seca, falta de ar, vômitos, diarreia e irritação cutânea.
Os estudantes tomavam café da manhã às 6h no refeitório da escola quando o vento trouxe a contaminação da fazenda vizinha, que revirava o solo para trocar o pasto pelo cultivo da soja. "Tentamos proteger a comida, mas um pó branco cobriu tudo. Não temos muito o que comer na aldeia, e tivemos que jogar tudo fora", relembra Erileide.
A demarcação do território Guyraroká está no STF (Supremo Tribunal Federal), onde tramita desde 2014, entre decisões e recursos, esperando uma votação do plenário. Essa demora jurídica e as ofensivas dos fazendeiros fizeram a OEA (Organização dos Estados Americanos) inspecionar as condições de vida dessa população.
Antonia Urrejola, advogada chilena que presidiu a CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos), visitou em setembro de 2019 o território e solicitou medidas cautelares para o Estado brasileiro proteger os 110 indígenas (metade deles menores de idade) daquela aldeia. "De lá pra cá, não foi feito nada por parte das autoridades. E nossa vida é lutar até onde der", reclama Erileide.
O próximo passo seria uma denúncia na ONU (Organização das Nações Unidas) sobre o uso do agrotóxico contra as comunidades originais, como aconteceu com o Paraguai — em 2019, o país vizinho se converteu no primeiro condenado no mundo por violação dos direitos humanos com motivo ambiental. A pena decorreu do caso do agricultor Ruben Portillo, que morreu em 2011 vítima de seguidas pulverizações promovidas pelas fazendas vizinhas, de propriedade de colonos brasileiros na cidade de Curuguaty, no Departamento de Canindeyú. Como as autoridades paraguaias não investigaram o caso, o país foi punido pela ONU.
Defensivos no ataque
Os chamados "defensivos agrícolas" estão sendo usados para atacar populações nativas também no vizinho Mato Grosso. No município de Confresa, o cacique Elber Ware’i, da etnia Tapirapé, diz que até as abelhas sumiram, de tanto inseticida jogado nas lavouras para matar besouros e percevejos. "Nós estamos sem mel para nossa bebida sagrada, o kawi, que fazemos da fermentação da mandioca e amendoim", conta Elber, líder da terra indígena Urubu Branco. "As abelhas são atraídas pela flor da soja e morrem envenenadas."
Outro relato é de Aquilino Tsiruia, primeiro padre católico vindo da etnia Xavante. "Agora em janeiro teve nova contaminação. Todo ano é assim, com o pessoal sofrendo de escamação na pele e dor de barriga. O pior é que o índio nem pode usar sua medicina porque as ervas também receberam o pesticida", descreve Tsiruia as ações na aldeia da qual é originário, Marãiwatsédé, na cidade Alto Boa Vista, localizada entre os parques do Xingu e do Araguaia.
Indígenas bebem água suja e são contaminados por agrotóxicos no MS. Há denúncias de crianças internadas. O problema poderia ser amenizado por um programa que instalaria cisternas, mas foi boicotado por um deputado. Leia a reportagem: https://t.co/VpNaERDU94 pic.twitter.com/WZYKhViyVr
— Repórter Brasil (@reporterb) August 16, 2018